DESCASAMENTO

Por me encontrar no Cairo, em delegação do Parlamento Europeu, não pude estar presente na assembleia do concelho de Lisboa do Bloco de Esquerda, que decorre enquanto escrevo.
I. O incómodo
Se estivesse presente, votaria favoravelmente o fim do entendimentocom José Sá Fernandes. Trata-se da formalização de uma situação de facto que não se apresenta reversível.
As últimas dúvidas dissiparam-se no "Prós e Contras" sobre a operaçãode Alcântara. Não, o problema não foi ver Sá Fernandes com a secretária de Estado. Isso incomoda, mas se os argumentos fossem justos, do mal o menos. O problema é que ele esteve do "lado errado"sem os argumentos certos.
O que de facto me incomodou foi não ter reconhecido o meu vereador. Tenho a certeza de que há dois ou três anos o Zé estaria do outro lado da barricada, demolindo qualquer Sá Fernandes que apresentasse os argumentos que ele apresentou. Foi esta a certeza que,definitivamente, me incomodou.
II. Por dentro e por fora
Naquele debate o dossier era concreto. A posição de Sá Fernandes foi insustentável porque o negócio concluído não apenas dispensou a figura do concurso, como a sua concretização incorpora escolhas sobre cargas e formas de escoamento cujos impactos no vale de Alcântara estão por avaliar. O meu vereador não podia, em consciência, avalizar uma operação nestas circunstâncias e no entanto foi isso mesmo que ele fez, aliás, desastradamente. O episódio coloca uma questão de natureza simbólica e outra, bem mais profunda, de ordem cultural.
A simbólica: Sá Fernandes construiu a sua imagem de provedor na defesa dos direitos dos cidadãos e na exigência ambiental. Por causa dela foi, por mais de uma vez, muito impopular. O que simbolicamente ruiu naquele debate foi esta última dimensão. Um símbolo demora décadas a construir, mas basta uma noite para que ele possa ruir e foi isso que aconteceu.
A cultural: sei, por experiência, que existe sempre uma tensão entre a política que se faz "correndo por fora" e a que se aprende quando "se está por dentro". Essa tensão é de cultura, de informação e de poder. Para que não sobrem dúvidas, penso que uma esquerda transformadora precisa dessa tensão. Quando a conquista do poder é o único ou o principal objectivo de uma força política, o instrumento acaba por se confundir com a própria finalidade. O PS é o que é por isso e os PC's no poder acabaram como acabaram, também por isso. Por outro lado, quem pense que "correr por fora" é uma vocação e não uma circunstância ou uma necessidade, auto-condena-se à ignorância e à propaganda.
Difícil é articular as duas dimensões. Compreendo que José Sá Fernandes quisesse mostrar que também era capaz de ser útil à cidade,"fazendo". Compreendo também que certas ideias que se têm quando se não conhecem as mecânicas da administração pública e a discussão aturada dos prós e contras de cada decisão, levem uma pessoa a rever ideias feitas. Só não aprende quem pensa que não precisa de aprender. Até aqui tudo bem. Mais: ainda bem. O problema é que não foi esta tensão que Sá Fernandes revelou naquele debate. O que ali se descobriu foi a sua apropriação pela "cultura do poder", a política que se resume à "política do possível", vista de cima. Sem esta mutação cultural não teria caído o símbolo.
III. Das boas e das más lições
É importante aprender com as experiências que chegam ao fim. O bloco não errou por se ter aliado a José Sá Fernandes. O bloco também não errou por ter trabalhado com independentes. O distanciamento entre um vereador e o partido por quem se apresentou podia ter ocorrido com um vereador militante. Finalmente, o bloco não falhou por ter subscrito um compromisso sobre aspectos capitais para a cidade. Foi essa a orientação da campanha e a consequência em política deve perseguir-se.
Como a própria resolução regista, o balanço do acordo comporta elementos muito positivos – em particular a integração no quadro de 700 trabalhadores com funções permanentes no município, um gesto inédito na administração pública e local – outros cujo saldo é ainda incerto e, finalmente, outros que se afastaram do que se tinha contratualizado. Uma melhor sintonia entre o vereador e o bloco, maior capacidade de iniciativa autónoma e uma relação mais politicamente mais tensa com o partido maioritário, poderiam ter levado mais longe as mudanças que a própria cidade exige.
IV. Concluindo
É bom que na fase das lições, não se desaprenda. Acerto e erro fazem parte do crescimento. Também é bom que não se cristalizem os anátemas. Nenhuma separação é fácil, mas nem todos os divórcios têm que ser litigiosos. O José Sá Fernandes optou pelo possibilismo e por vestir a camisola e as dores do partido maioritário na câmara. Era inevitável essa evolução? Não sei. Terá o bloco feito tudo o que podia para a evitar? É matéria de reflexão sobre a qual os que acompanharam mais de perto este ano e meio de experiência terão melhor opinião do que eu. Apenas sei que a manutenção de um equívoco não serve a ninguém. O artigo que hoje o José Sá Fernandes publicou no Público mostra como pode ser grande a diferença entre um copo meio cheio e um copo meio vazio. Sugiro que ele seja cotejado com a opinião que o Heitor Sousa apresenta sobre as pistas cicláveis, no esquerda.net. Ele ajuda a perceber porque é que a prestação televisiva, ou a operação skoda na Praça das Flores ou a presença na conferência de imprensa de desagravo a Ana Sara Brito, não foram momentos infelizes, mas parte de uma mutação de cultura política. Acontece e recuso quaisquer julgamentos no estilo "ele vendeu-se". Apenas tiro ilações de ordem política. Hoje, é separados que estaremos melhor.
6 comentários:
Esta é uma opinião.
Falta a opinião do Daniel Oliveira hoje publicada no Arrastão, o confronto de ideias sempre foi salutar.
Isto já foi o blogue do Zé. TT desencanto...
O PS acaba de atacar o Bloco no Parlamento. Acusa-o de estar a fazer uma purga e de ser totalitário "só porque o Sá Fernandes colabora com o PS na Câmara de Lisboa"!
No DN e ontem, o Sá Fernandes diz que "Este PS tem sido mito bom para Lisboa".
Vitalino Canas, porta voz do PS, e o ministro dos assuntos parlamentares saltaram em defesa do Sá Fernandes.
Quem é que falou em estratégias partidárias?
Os devidos esclarecimentos: este nunca foi o blog do Zé, mas sim um blog livre sobre a actividade do Lisboa é Gente, daí serem colocadas notícias sobre os documentos e iniciativas dos deputados e das deputadas municipais, artigos de opinião vários, divulgação de acontecimentos culturais, etc. Por assim ser considerado ele mantém-se activo, porque o Programa Lisboa é Gente continua a ser a linha de orientação dos seus colaboradores e das suas colaboradoras.
os aderentes e simpatizantes do Bloco de Esquerda que estiveram no Hotel Mundial, expressaram à concelhia de Lisboa, a sua vontade inequivoca de que queriam o rompimento com o Vereador Sá Fernandes.
A votação dos aderentes e simpatizantes de Lisboa do Bloco de Esquerda foi de 93% para que se rompese o acordo.
Repito, noventa e três por cento dos lisboetas ali presentes, votaram a favor da proposta da Concelhia, ou seja queriam que acabasse o acordo.
António
Depois de rompido o acordo com o Sá Fernandes, resta agora exgir atravéz da assembleia Municipal de Lisboa e das Assembleias Municipais de Freguesias, que o Partido socialista cumpra tudo o que ainda está por fazer dos 6 pontos que se comprometeu e não só. O Bloco de Esquerda deve continuar a lutar por isso.
Quanto ao vereador Sá Fernandes, não deixa de ser estranho que continue a falar como se já tivesse garantida a sua eleição nas proximas autarquicas. Sobretudo agora que perdeu o apoio do partido que o fez eleger.
Estranha postura ...
António
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